RIO - “Não tem erro. É só dirigir até Itaboraí e pegar a estrada para
Cachoeiras de Macacu. Me liga quando estiver chegando que eu espero
vocês na segunda queijaria”, diz o Mestre Camisa, pelo telefone,
informando as coordenadas do sítio onde ele mora e organiza encontros
nacionais e internacionais e aulas de capoeira. O sotaque é a mistura
equilibrada de um baiano radicado no Rio que, há 16 anos, foi morar no
interior do estado. Encontramos o capoeirista na RJ-116 e seguimos sua
picape numa estradinha de barro espremida entre uma encosta e um charco.
Logo depois de um enorme pé de açaí, fica a entrada do sítio, um lugar
idílico, onde pavões, araras, gansos e papagaios ficam soltos o tempo
todo. Voam embora, mas voltam. Há uma capelinha de São Jorge no pé de um
pequeno morro e, espalhados num imenso gramado, amplos quiosques
construídos para o treino da arte que, como define Camisa, “engravidou
na África e nasceu no Brasil”.
— Este lugar é um
quilombo moderno, de resistência contra o estresse da cidade grande —
explica José Tadeu Carneiro Cardoso, de 58 anos, que batizou o local de
Centro Educacional Mestre Bimba, em homenagem ao criador da chamada
capoeira regional e seu mentor na adolescência em Salvador. — Luto para
preservar a memória dele. A capoeira é patrimônio imaterial do Brasil. A
melhor forma de manter sua história é cuidar do legado dos mestres.
Camisa
deixa seu pequeno paraíso e vem ao Rio pelo menos duas vezes por
semana, para acompanhar aulas e participar de reuniões. Está sempre
confabulando algo. No momento, organiza o recém-criado Instituto Mestre
Camisa e trabalha na produção do festival que, em agosto, vai comemorar
os 25 anos da Associação Brasileira de Apoio e Desenvolvimento da
Arte-Capoeira (Abadá-Capoeira), criada por ele. Mais de cinco mil
“seguidores” estarão na Fundição Progresso, na Lapa, para três dias de
shows e atividades envolvendo as artes da capoeira (dança, luta, música,
artesanato etc).
Vai ser uma celebração da própria vida de
Camisa. Ele tinha 16 anos quando veio parar no Rio ao final de uma turnê
que costurou o país com apresentações de capoeira e música baiana.
Antes de criar seu próprio método de ensino e filosofia, o nordestino
integrou o Grupo Senzala durante anos. O primeiro aluno foi um gaúcho
que tinha visto o show do “Furacões da Bahia”. Na época, Camisa ainda
morava num quartinho da academia em Laranjeiras onde dava aulas. Hoje,
ele bate no peito ao dizer que ensinou capoeira a milhares de pessoas no
mundo.
O capoeirista já esteve em mais de 60 países para
ministrar palestras e cursos. Este ano, foi inaugurado o Complexo
Residencial Mestre Camisa, conjunto habitacional na cidade de
Romilly-sur-Seine, na França. Por causa do seu trabalho de pesquisa e
divulgação da cultura brasileira, recebeu até título de doutor honoris
causa da Universidade Federal de Uberlândia. Além disso, a
Abadá-Capoeira está envolvida em mais de 150 projetos sociais. São cerca
de 15 mil pessoas beneficiadas com aulas gratuitas. Há ainda campanhas
sociais, com nomes como “Capoeirista sangue bom”, de doação de sangue
para o Hemorio, e “Meu berimbau pede paz”, contra a violência. Mestre
Camisa virou uma espécie de diplomata da cultura nacional.
—
Pessoas de vários países aprendem a jogar e querem saber como surgiu
nossa arte. A história da capoeira é mais importante que o jogo. O que é
mais bonito que o homem lutar pela liberdade? — argumenta Camisa,
referindo-se ao nascimento da luta, criada por escravos para se defender
dos feitores dos engenhos. — Como eu só falo português nas aulas, os
gringos aprendem até o idioma. Não tem tradução para palavras como ginga
e manha.
Sob a perspectiva da divulgação da capoeira, o sociólogo
e professor Muniz Sodré atribui ao baiano lutador a sucessão do Mestre
Bimba, de quem também foi pupilo.
— Camisa tem uma cabeça
universitária sem nunca ter passado por faculdade. Sabe misturar a
prática do jogo com o sentido de preservar a cultura. Além disso, é um
“poliartista”, que luta, canta, compõe e toca bem o berimbau — elogia
Sodré. — A capoeira faz mais pela cultura brasileira no exterior do que
adidos culturais em embaixadas.
Em suas viagens, sempre como
convidado para eventos, Camisa viveu de tudo. Terremotos no Japão a
bombardeios em Israel. Durante um voo doméstico em Angola, ficou sabendo
que o aeroporto da cidade de Benguela, para onde estava indo, havia
sido atacado (o país africano estava em guerra civil). Hoje, a
frequência das viagens diminuiu bastante. O mestre prefere ficar perto
da mulher e dos três filhos, com idades de 33, 23 e 13 anos, todos de
casamentos diferentes.
— Eles moram no Rio, mas passam o fim de
semana comigo. Chega de viajar tanto. Sem gastar um centavo do meu
bolso, percorri o mundo. Agora, deixo as pessoas virem ao meu quilombo
respirar ar puro.
O retorno ao campo
A ida de Camisa para o
interior foi a volta ao campo do menino de Jacobina, no extremo norte da
Chapada Diamantina. Ele passou a infância “brincando de capoeira na
rua”. O irmão mais velho, Camisa Roxa, foi quem mostrou que o assunto
era coisa séria. Depois da morte do pai, quando o garoto tinha 9 anos, a
família foi toda morar em Salvador. Camisa se formou com Mestre Bimba
e, aos 16, partiu na turnê nacional organizada pelo irmão. O Rio era a
última parada. Eles se apresentaram em locais como o Canecão e o Teatro
Opinião e, ao final, parte da trupe partiu num navio rumo à Europa. O
adolescente ficou para trás.
— Chorei quando vi o navio zarpar, no
cais do porto. Mas rasguei ali mesmo a passagem de volta para Salvador.
Cheguei a dormir na rodoviária, fingindo que estava esperando ônibus.
Mas consegui me fixar.
Décadas se passaram até Camisa decidir que o
campo é seu lugar. O intuito da mudança foi levar o trabalho social ao
interior. No sítio, ele dá aulas a crianças e forma professores. Também
promove encontros com centenas de pessoas, que além de treinar capoeira,
fazem trilhas e cavalgadas. Tudo faz parte do conceito da capoeira
ecológica. O mestre promove rodas no meio do mato e planta árvore para
fazer berimbau. Criou até um “berimbau vivo”, amarrando a corda no
tronco de uma árvore.
— O Camisa sempre descobre o caminho para
fazer. No festival, em agosto, ele quer lançar o título de “notório
fazer” — diz Perfeito Fortuna, presidente da Fundição Progresso e amigo
do mestre desde que ele se apresentou no Circo Voador, em 1982, quando a
lona estreou no Arpoador. — Não existe a expressão notório saber? Às
vezes, quem sabe fazer não faz. Mas quem faz sempre sabe. E o Camisa
faz.
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